sábado, 7 de março de 2015

O PALÁCIO DAS LÁGRIMAS


“Pai, por que chamam este prédio de “Palácio das lágrimas?”
Estavamos na esquina da Rua da paz com a Rua treze de maio, em frente ao casarão antigo, que fica defronte a Igreja São João, onde hoje funciona a Faculdade de Odontologia, que é conhecido por esse  nome  devidos as diversas  histórias  que  contam sobre este sobrado.
 Havia chuviscado um pouco, então me aproveitei para ilustrar a situação e encher a cabeça de meu filho de fantasias. Fomos até a escadaria da entrada do prédio e mostrei para ele as gotículas  espalhadas pelos degraus.
“Vê isso aqui? São lagrimas, lagrimas que nunca secam.”
Ele me olhou com desconfiança.
“É sério, isso faz parte de uma maldição.”-complementei.
Meu filho, que adora ouvir histórias, principalmente quando sou eu que as conto, fingiu acreditar e mostrou logo interesse.
“Uma  maldição, adoro história  assombradas.”
Comecei então pela história mais adocicada que conhecia, só para ver  a reação dele.
“Bom, era uma vez, uma menina que morava neste casarão, filha de um rico fidalgo que se apaixonou por um de seus jovens escravos. Quando o pai soube lhe deu uma surra daquelas e proibiu o namoro. A menina sentou bem aqui nesses degraus e chorou por horas. Quando o pai a chamou para entrar, ela lançou a maldição: ‘Meu amor vai viver para sempre, e enquanto ele viver  estas  lágrimas não secarão.’ Então ela continuou sentada, no mesmo lugar, dias e noites, sem dormir e sem comer, até que morreu. Fim!!!
“Pô, pai!!! isso não tem nada de assombrado, parece história de princesa...mostrou decepção. Achei  graça.
“Tá bom, vou te  contar uma outra  história, talvez desta tu gostes mais...
“Só quero é vê!!!”- me desafiou.
“Então aí vai. O dono dessa casa possuía um monte de escravos, dentre eles havia  uma escrava muito jovem e muito bonita, que atraia os olhares de todos e despertava fortes paixões. Um outro escravo se apaixonou por ela mas esta rejeitou o seu amor. Inconformado e cheio de ciúmes, o apaixonado  bolou  um terrível plano de vingança: colocou veneno nas refeições  que foram servidas  aos filhos do fidalgo e deixou o frasco escondido debaixo do travesseiro da bela escrava. Assim que o frasco  foi  encontrado, a pobre foi acusada pelos assassinatos e  condenada a forca. Ela jurou inocência e de nada adiantou. Enquanto era arrastada para fora do casarão, pediu piedade aos orixás de seu povo e rogou uma praga ao descer em  prantos pela escadaria: “Pelo tempo em que não for descoberto o verdadeiro culpado, estas lágrimas jamais  secarão’.Fim”
“Ah!, essa até que foi melhorzinha, mas nem um pouco assustadora!!!”
“Tu quer ficar sem dormir essa noite?  Então tá! Saiba que aí dentro se houve gemidos e gritos  horrorosos de pavor, tanto faz se for de dia e ou de noite (senti minha própria ironia, afinal estavamos em frente ao prédio da faculdade de odontologia, onde os alunos tinha aulas práticas com cobaias voluntários, e de fato se ouviam mesmo os tais gemidos e gritos, não de terror, mas de dor mesmo). Vamos lá, entremos, vasculhamos todos os cômodos e se tiver algum fantasma de plantão agora, pode ser que ele mesmo te conte uma história bem mais assustadora..”-falei fingindo seriedade.
Ele riu, mas achou melhor não arriscar.
“E fantasma lá sabe contar história, eles só querem assustar a gente!!! Não tem outra que seja assustadora de verdade?”
Tinha sim. Mas essa, eu estava guardando para o final.
“Olha, aqui já funcionou a “Escola Modelo”, os alunos ficavam apavorados quando era semana de  provas...”
“Que Chaaaato!!!”- protestou.
“Escuta essa: aqui já morou um português chamado Jerônimo de Pádua, ele  e o irmão vieram para o Brasil para fazer fortuna. Enquanto ele enriquecia com o tráfego negreiro e outras atividades, o irmão não obteve sucesso e continuou pobre. Jerônimo tinha como amante uma de suas escravas e com ela  teve vários filhos. Sabendo que os seus sobrinhos não seriam considerados herdeiros do pai, pela condição de escravo que possuíam, o irmão de Jerônimo tramou a sua  morte para herdar sozinho sua fortuna. Após o crime, herdou, não só a fortuna do irmão, obteve também como propriedade a mulher deste e os sobrinhos que passaram a ser seus escravos. O tio usurpador impunha maus tratos exagerado a família do irmão falecido. Porém, um dos sobrinhos descobriu a verdade e, indignado, arremessou o crápula por uma destas janelas e este morreu instantaneamente. O sobrinho foi condenado a morte e enforcado em frente ao sobrado, dizem que ainda hoje se vê o espírito dele dependurado naquela árvore ali,- apontei.- momentos  antes  de sua morte lançou a maldição sobre o prédio: ‘“Muitas lágrimas foram derramadas nessa casa por mim e pela minha família e elas jamais secarão e por toda  eternidade, esse sobrado será conhecido como palácio das  lágrimas.”
“Legal, dessa aí eu gostei, mas posso fazer uma pergunta?”
Uma pergunta, quando se está contando uma história para uma criança é algo muito delicado e elas sempre vão aparecer, faz parte do processo, então...
“Pode sim.”
“Pai, essa maldição só acontece nos dias de chuva?”
Para perguntas obvias tenha sempre na mão  uma resposta abstrata:
“Meu filho, esta ilha é cheia de mistérios...”







quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

OS PASSAGEIROS.



Viajando sozinho a noite na BR 135, minha missão, entre outras coisas, era levar um carro adquirido por amigo, de São Luis para Teresina. O carro era um PASSAT 72, totalmente reformado e modificado, o chassi original foi comprado em um ferro velho, ainda estava intacto, apesar de ter sido vendido após um grave acidente.
Já havia passado de Peritoró quando o rádio ligou sozinho em alguma estação local que só tocava aquelas canções melosas dos anos setenta, procurei outra estação e esta só tocava disco’70. O rádio voltou sozinho para a primeira estação.
Achei estranho, todavia não quis pensar no assunto. A estrada estava escura e chovia muito. Tinha que me concentrar na direção. Os caminhões passavam em alta velocidade jogando luz alta. Outro veículo se posicionou atrás de mim e pediu ultrapassagem, foi quando reparei no retrovisor alguma coisa diferente no meu semblante. Talvez por causa da escuridão meus olhos, que são verdes, pareciam castanhos e, tive a impressão de que minhas sobrancelhas estavam mais grossas e meu rosto mais corado...
Em um instante me vi sozinho na estrada, nenhum carro vindo em nenhum sentido da rodovia, apenas os meus faróis amenizavam a escuridão da estrada. Foi quando ouvi pela primeira vez... Parecia, no início, com um miado de gato. Não me incomodou.
Já na terceira vez eu tinha certeza, era um choro de bebê e vinha do banco traseiro. Já assustado espiava pelo retrovisor, não via nada além daqueles olhos que não eram os meus.
Com os nervos a flor da pele, desliguei o rádio e ele ligou de novo e, para minha surpresa vozes femininas, de dentro do carro acompanhavam as canções. Eu já estava para lá de assustado, contudo as coisas só iriam piorar. Atrás de mim, ouvi duas crianças disputando um brinquedo. Foi quando olhei diretamente para trás pela  primeira vez...
Por trás do banco do carona vinham uma adolescente de uns quinze anos, longos cabelos negros e trajando uma blusa rendada a moda dos hippies, segurava um bebê no colo, enquanto olhava para a vidraça e continuava cantando, atrás de mim dois meninos entre quatro e sete anos brigavam por um “Falcon”, um daqueles bonecos de ação da “Estrela”.
“Querido, preste atenção na estrada”- disse a voz feminina ao meu lado.
“Não se preocupe, meu amor!!!- respondi  instantaneamente, sem pensar. E foi sem pensar mesmo, pois estas palavras se quer se passaram em minha mente.
A mulher, ao meu lado, no banco do carona, aparentava ter mais de trinta anos, era bonita e me olhava com ternura e familiaridade. De uma forma estranha, também a vi com uma velha conhecida. Mais estranho ainda, é que eu deveria está apavorado, afinal de contas, aquelas pessoas não eram deste mundo. Porém, sentia uma espécie de alívio por estarem ali.
“Quem são vocês???” pensei em perguntar. A mulher apenas percebeu minha inquietação e perguntou: “O que houve querido?”. “Nada.” Respondi outra vez involuntariamente.
Percebi que ela me olhava, mas não via a mim. É como se houvesse outra pessoa no meu lugar, dirigindo o automóvel. Me dei conta, de  repente, que não era eu que devia está ali, que eu era o intruso. Olhei para o retrovisor, e aqueles olhos estranhos estavam lá, no lugar dos meus.
Foi quando aconteceu. Logo depois da curva um caminhão ultrapassando um carro de passeio, invadiu a minha pista e veio em alta velocidade em nossa direção. Os faróis do caminhão iluminaram todo o interior do carro e gritos pavorosos entoaram em minha cabeça.
Atravessei o caminhão como se fosse feito de fumaça, o carro derrapou e fui parar no acostamento. Olhei para trás e vi que os meus passageiros, estavam de pé na beira da estrada. A adolescente com o bebê no colo e a mulher segurando a mão das duas crianças. Sai do carro, não me importando nem com o medo nem com a chuva e fui de encontro a eles.
“Perdão!!!”, a palavra me veio involuntariamente a boca. Olhei para o chão, e vi sob os pés daquela família, cinco cruzes, daquelas que a gente vê o tempo todo na beira das estradas. Senti os olhos marejados, apesar da chuva.
Soube mais tarde, pelo meu amigo que adquiriu o veículo, que quase uma família inteira havia perdido a vida naquele carro, num grave acidente naquele mesmo ponto da estrada. Apenas o pai sobrevivera, vindo a falecer anos depois.
Retornei para o carro para continuar a viagem. Liguei o motor e acendi os faróis. Um senhor de aparentemente uns sessenta anos apareceu na minha frente. Este se aproximou da janela do carro e com um sinal me pediu para baixar o vidro.
Tinha os mesmos olhos que eu via no retrovisor, apenas com o semblante um pouco mais envelhecido. Sorriu  para mim e me disse em um tom sincero.

“Daqui para frente, que só Deus lhe acompanhe...”

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

O RAPTO DO MENINO JESUS


O causo que vou contar agora, apesar da estranheza dos acontecimentos, se deu umas daquelas pequenas cidades do interior do Brasil, onde as tradições se mantêm com grande intensidade e a fé, nos santos, nos milagres e nas promessas, permanecem por gerações.
Nas procissões as crianças se vestem de anjos e imitam o olhar devotado dos mais velhos, brincam de correr por entre as nuvens e de segurar na mão de Nossa Senhora.
Os pais, orgulhosos, por verem seus filhos repetirem, ás vezes a contragosto, os costumes que por gerações lhes foram transmitidos, ajoelham-se e renovam as promessas: “Paro ano é o meu caçula que vem de anjinho de Nossa Senhora...” e pronto, a tradição será mantida.
E promessa não tem medida. Se pede o que se quer e se promete, conforme a graça, o que vier na cabeça.Daí, a criatividade do devoto e a benevolência do santo é o limite.
O presépio da paróquia é um costume tão antigo, que parece que nasceu com a própria cidade. Na época do advento, toda a comunidade se reúne, junta a palha, e o monta ali, no meio do largo da matriz, o enchendo de luzes e fitas coloridas, e a cada ano tinha que ficar mais bonito e enfeitado.
As imagens de barro no centro representavam a cena da Natividade. Eram miniaturas de no máximo cinqüenta centímetros, e na manjedoura, na noite do natal seria colocada a imagem do Menino Jesus, esta majestosa, esperava dentro da igreja, num pequeno altar armado na sacristia. Foi assim que surgiu um costume próprio das crianças do local.
Depois da missa matinal, as crianças iam até a sacristia conversar com o menino Jesus. Bom, ele também era criança e as entenderia melhor que os outros santos, que eram adultos e não saberiam bem essas coisas de crianças. Nessas horas faziam suas promessas, pediam o brinquedo que queriam ganhar no natal, que os pais parassem de brigar, pra passar de ano, pra irmã mais velha deixar de ser chata, para ficar rico, inteligente e bonito, quando crescer, etc.
A paga das promessas também foi consolidada pelo costume. Na noite de natal, após a Missa do Galo, o pároco ia até presépio e colocava a imagem do menino Jesus na manjedoura do presépio, as crianças se aproximavam e o enchiam de boizinhos, vaquinhas e cordeiros de barro, papelão ou de madeira, e, conforme a graça alcançada e a criatividade das crianças, variavam o tamanho, cores e acabamento dos animais.
Ocorreu que em certo natal, quando as crianças se dirigiram à sacristia encontraram o altarzinho vazio, procuraram o pároco que de nada sabia. Foi um alvoroço em toda a paróquia, ninguém tinha explicação para o sumiço do menino Jesus.
A festa do natal estava ameaçada, muitas crianças não entenderiam uma providencial substituição da imagem do menino Jesus, afinal de contas foi  diante daquela imagem que fizeram suas promessas, se colocassem outra no lugar não estaria certo.Promessa é promessa, não se pode fazer arranjo.
A noticia se espalhou por toda cidade, e os pais faziam de tudo para que as crianças não soubessem do desaparecimento da imagem, ao pároco não restou alternativa senão procurar a autoridade policial.
O delegado chegou com sua equipe e isolou o local do crime, foi feita uma minuciosa perícia, mas nenhuma pista poderia solucionar o caso, tendo em vista que muitas pessoas já haviam estado ali.
O motivo do crime também era um mistério, a imagem não tinha nenhum valor econômico, era uma daquelas miniaturas de porcelana facilmente encontradas em qualquer loja de variedades. A única alternativa era se acaso alguém intentasse sabotar a festa do Natal, mas quem faria uma maldade dessas...
Não havia outro jeito, teriam que substituir a imagem do menino Jesus. A notícia se espalhou rápido e, como muitas crianças já estavam sabendo, não havia de ser diferente.
Durante a missa do galo os pais se comoviam com o olhar desolado das crianças, lamentavam profundamente o sumiço da imagem, alguns não se continham, praguejavam contra o desalmado que fez essa monstruosidade.
Na homília, o pároco aproveitou a situação para lembrar aos fieis o verdadeiro sentido do uso das imagens, que nada mais são do que mera representação daqueles que, com seu exemplo, nos inspiram na fé a seguir a vontade de Deus, e lembrou as crianças: “ Meninos, aquele menino Jesus,que ficava lá na sacristia, era só uma peça de porcelana, não era com ele que vocês conversavam, era com o menino Jesus, que mora no coração de vocês...” e assim foi o sermão, que se passou entre choros e soluços.
Encerrada a Missa do Galo, o pároco se dirigiu até o pequeno presépio armado na praça da matriz levando nas mãos a imagem substituta do menino Jesus. As crianças acabrunhadas o acompanharam trazendo consigo suas oferendas, os pais enternecidos seguiam com os olhos o pequeno cortejo.
No momento em que o padre ia colocando a imagem na manjedoura, chega um menino correndo de bicicleta e pede licença. O menino todo suado e bufando sem parar, devido ao grande esforço pra chegar a tempo, se aproxima do presépio e coloca um pequeno objeto na manjedoura.Era o menino Jesus desaparecido.Então pediu desculpa a todos e se explicou:

“É que eu pedir com tanto fervor, para o menino Jesus pra eu ganhar uma bicicleta no Natal, que quando fui agradecer, não me contive de tanta felicidade e  convidei ele pra dá uma voltinha...”