terça-feira, 8 de julho de 2014

A MALDIÇÃO DA MULA SEM CABEÇA.



Ritinha, moça prendada e de bons modos, nunca se interessara por homens ou por qualquer outra coisa que não fosse a vidinha simples que levava. De uma inocência extraordinária, que não via maldade nos olhos famintos dos homens quando seminua se atirava no rio e depois secava seu corpo esbelto na prainha.
Era, sem dúvida, a jovem mais desejada do vilarejo. Todos os bons partidos a disputavam, todas as mulheres a invejavam, e de todas as que a invejam, Florinda era a mais cruel. Era de uma obsessão avalassadora, queria o mal à menina, e, não descansaria enquanto não a visse caída em desgraça na sua honra. Dissimulada fazia-se de sua melhor amiga. 
À noite conversavam, eram confidentes. Florinda, contava suas experiências, seus toques e avanços com os rapazes, apimentava as situações, com exagero, ora para estimular a companheira, ora para arrancar-lhe algum segredo. Ritinha apenas ouvia... Espantava-se com audácia da amiga que já tinha ido tão longe, sentia nojo de algumas coisas, fechava os olhos, se via naquelas situações e dizia: “Que horror!!!”
Florinda vivia empurrando pretendentes para Ritinha. Escolhia a dedo os piores possíveis: aqueles que só a simples companhia já a deixariam mal falada; os mal intencionados, que fatalmente a levariam para um mau passo; os insignificantes,  que se a possuíssem a reduziriam a sua própria insignificância;  os cafajestes, os desqualificados, os fracassados, todos, não poupava nem os afeminados. Quanto maior a vergonha, melhor. Ritinha, muito mais por desinteresse no assunto do que por desdém, declinava a todos.
A megera não sabia o que de fato mais lhe incomodava, se era a beleza infindável de Ritinha ou aquele seu jeito pueril de donzela. Os olhos amendoados, verdes como o campo na época das chuvas, os longos cabelos negros cobrindo-lhe os ombros, o corpo escultural da menina que desabrochara numa bela morena, de pernas torneadas, busto firme e seios pontiagudos, de uma silhueta invejável, magra e formosa. E tinha aquele sorriso doce e sincero, de uma honestidade escandalosa, seus gestos espontâneos, sua voz suave, a total falta de malícia, nas intenções, nas palavras, na conduta. Toda tão certa, tão lídima, tão pura, tão sem graça!!!
Mas, era mulher, iria cair em tentação um dia. Mais cedo ou mais tarde, cairia na lábia de algum conquistador ordinário, ficaria entorpecida de paixão e de desejo, se entregaria aos prazeres da carne, fornicaria, de forma estúpida e vulgar. Florinda esperava com ansiedade por esse dia, vigiava cada passo, cada olhar e cada gesto da pobre donzela, buscando pistas de seu desvirtuamento.
Até que um dia percebeu um suspiro de Ritinha. Um leve descompasso na respiração, e por fim um suspiro, incomum na moçoila, só podia ser coisa de paixão, de amor mesmo!!! Pôs-se a espreita, pegaria a danada com a boca na botija...
Mas não seria tão fácil como imaginava, Ritinha já dissimulava gestos e sorrisos, tinha uma malícia quase imperceptível, pesava as palavras, continha os olhares, disfarçava, ninguém além de Florinda, que já estava de tocaia, se deu conta da mudança de comportamento da moça.
Percebeu que o corpo e os modos da rival mudaram. Ritinha exalava sensualidade, “Estava no cio, a cadela!!”, maldizia Florinda com seus botões. “Já conheceu algum homem, eu garanto! Ah, se eu descubro quem é o fornicador!!!”. Deixar as claras o defloramento de Ritinha e revelar o nome do sedutor, seria a glória. “É casado!! Tomara que seja!!!!”
Mas, a rotina da coitada não mudara em nada, a menina só tinha seus afazeres de casa e os estudos como obrigação, a Igreja, como devoção e, jogos infantis como distração.  Não bebia, não fumava, não se dava as conversas e nem aos fuxicos... Era entediante acompanhar aquela mórbida vida de menina sonsa. Contudo, a certeza de que teria êxito na intentada motivava a caninana a se manter na Tocaia.
Reparou que Ritinha se demorava por mais tempo na igreja, depois que todos saiam, ainda ficava alguns minutos, vinte no máximo, depois saía, junto com o Padre Aurélio, elogiando a homilia, e ainda, que levava mais tempo nas confissões. Desconfiou destes intervalos, e por isso, não desgrudava da amiga no final das missas.
Uma vez, Ritinha avisou que ficaria para a confissão, Florinda disse “Tudo bem!” e que voltaria para a casa, porém, escondeu-se no fundo da nave da igreja. Ritinha ajoelhou-se diante do confessionário e se pôs a desfilar seus pecados ao Padre Aurélio, Florinda ouvia: “Só coisas bobas, não renderiam nem três ave-marias, parecia listinha de pecados de menina que ia fazer a  primeira comunhão, nada comprometedor, aff...”
De repente, Ritinha se levanta e ao invés de cumprir a penitência adentra o confessionário. Florinda se aproxima e ouve gemidos lascivos. Eufórica, abre a porta do confessionário, e lá está Ritinha, com os seios, a descobertos, acoplados aos dedos do padre, que a mantinha sentada em seu colo, com as coxas expostas, enquanto se beijavam, entre caricias e espasmos frenéticos.
Florinda mal pode conter a emoção, estava disposta a sair gritando pelo povoado o que acabara de vê. Iria chamar a atenção de todos, desmascarar aquela fingida, acabar com a falsa donzelice de Ritinha. Seu sangue ferveu e lhe subiu a cabeça de tanta excitação, ficou corada.
Correu para o Largo e começou a chamar Ritinha de todos os sinônimos que a palavra meretriz possa ter. As pessoas se aproximavam e a cascavel, descreveu com uma riqueza exuberante e sórdida, os detalhes da cena que presenciara.
Padre Aurélio e Ritinha saíram da Igreja envergonhados, porém amparados um pelo outro em um abraço. Os olhares da assistência penetravam como lanças afiadas. Corajosa, Ritinha segurava as lágrimas e o Padre devolvia a platéia os olhares de acusação.
Ritinha, confrontado a falsa amiga, lhe diz apenas:  “O teu castigo há de ser maior que o meu...”
Padre Aurélio foi transferido para outra paróquia bem distante e por anos, nenhum outro padre apareceu por lá. Foi então que começou a época das assombrações: Na estrada, uma bola de fogo seguia e assustava os viajantes, na mata, uma mula sem cabeça soltando fogo pelas ventas, assustava os caçadores.
Um dia, pela manhã bem cedinho, o corpo de Florinda foi encontrado sem vida na cama. Teve uma morte estranha, estava deitada de bruços e a cabeça totalmente virada para cima, como se alguém lhe tivesse torcido o pescoço.
Dizem que nas noites de lua cheia, durante o sono a cabeça de Florinda se deslocava do corpo se transformando em fogo fátuo e saia flutuando pelos campos e estradas. Acham que alguém, sabendo da maldição, colocou o corpo dela no sentido contrario enquanto a cabeça passeava.

De Ritinha, não se teve mais notícias, desaparecera completamente depois do escândalo. Falam que ela se transformou na mula sem cabeça, e, que se algum valoroso cavalheiro conseguir quebrar o encanto, aproximando-se o suficiente para ferir a besta com um galho até que sangre, terá o eterno amor da mais bela sertaneja que já existiu naquele lugar...

quinta-feira, 22 de maio de 2014

O “BEBUM” E A CARRUAGEM ENCANTADA.



Madrugada de quinta para sexta, noite de lua cheia, Nhá Jansen, toda espevitada, sai em seu pavoroso coche fantástico em busca de almas desavisadas para amaldiçoar. Fez o seu itinerário de sempre pelas principais ruas do centro histórico de São Luis, passou na Fonte do Ribeirão para dá um olá e jogar uns camundongos para amiga Serpente Encantada das galerias subterrâneas, ao encontrar a colega de assombração, reclama da vida, ou da morte, sei lá...
“O negócio está ficando difícil nem uma viva alma, isso é que é uma maldição...”
A serpente consola:
“Que isso pequena, hum, deixa de besteira. O povo mudou paras as bandas do São Francisco, mas tem sempre um esquecido das festanças zanzando por aí.
“Só vendo colega, só vendo...”
E não é que do nada, como se alguém tivesse falado o nome do diabo, que ele apareceu... Lá vinha a “vítima” cambaleando e tropeçando na calçada, descendo a Rua dos Afogados. Com um sorriso largo, de orelha a orelha mesmo, a maldita partiu no encalço do infeliz.
Vamos por partes: para quem ainda não sabe da missa o terço, Nhá Jansen, é Ana Jansen ou Donana, que em vida era Ana Joaquina Jansen Pereira, famosa matriarca do tempo do Ronca, que ficou conhecida como a “Rainha do Maranhão”, famosa pelo poder político que conquistou, por histórias envolvendo retratos, pinicos e fezes, e por ser perversa e exageradamente cruel no trato com os escravos. Há que diga que isso foi só intriga da oposição.
O fato, que nos interessa no causo em questão, é que por conta de suas maldades com os cativos, a mesma foi alvo de uma terrível maldição: depois de tanto usar os negros como tapete para não sujar seus sapatos de linho europeu na lama maranhense; de jogar os condenados num poço cheio de lanças afiadas, e; de arrancar com alicate os dentes de uma negra formosa, que por azar atraiu com seu sorriso a atenção de um fidalgo preferido da madame (que de modo singelo elogiou a arcada dentária da negra despertando o ódio e  inveja da broaca), bateram um tambor para ela lá para as bandas da Praia Grande...
A maldição consistiu numa condenação eterna: sua alma penada pela eternidade vagaria pelas ruas de São Luis em uma carruagem encantada, o coche sinistro seria puxado por uma pareia de cavalos que ao invés de cabeças teriam fogo nas fuças e conduzida por um escravo decapitado. Ao se deparar com algum incauto, oferece ao coitado uma vela acesa, na manhã seguinte a mesma se transforma em osso de defunto e a vítima, com dores, alucinações e febres, definha enfurnada em uma cama até a morte.
Mas, com o passar dos anos o ofício de assombrar ficou penoso para as criaturas das trevas do Maranhão: o povo se mudou do centro histórico, as histórias foram esquecidas, as crianças só querem saber de vampiro, lobisomem e zumbi, essas assombrações do cinema. Dizem até que tem outra aí querendo ser “Rainha do Maranhão”, desse jeito ninguém pode ser amaldiçoada, já deu o que tinha que dá...
O homem subia a Rua dos afogados, canbaleando, em direção a Praça Deodoro. Pronta para o bote, Donana pensava: “É hoje que eu cumpro minha sina!!!”. Aproximou-se e, pela janela da carruagem ofereceu a vela maldita. O homem de supetão, puxou um charuto do bolso do paletó e acendeu na vela. “Brigado, pela delicadeza” agradeceu. Nhá Jansen, atônita, murmurou: “Era só o que me faltava...”
Tinha lá os seus sessenta anos, bêbado de dá dó, o paletó encardido e amassado, não via sabão e ferro de engomar a anos. Os cabelos grisalhos pareciam um ninho de japim escorrendo de sua cabeça, orelhas e nariz agigantados, assim como os dedos das mãos, tinha a pele escura, mais de fato não era negro, “um mestiço” (desdenhou a amaldiçoada). Larga, em um sorriso de lábios anêmicos, a boca quase desprovida de dentes exalava mais álcool que um alambique, fétida como carniça, enojou até a mais ilustre das defuntas.
Uma idéia diabólica se apossou de Donana, iria se divertir com aquele mentecapto e depois amaldiçoá-lo. Toda assombração tem direito a um “relax”, um divertimento, pensou. Então ofereceu ao Pé de Cana uma carona em seu coche infernal.
Os cavalos com fogaréu nas ventas, o cocheiro decapitado, o estranho aspecto da carruagem e o voz tenebrosa da Sinhá, nada, nem de longe intimidou ou chamou a atenção da vítima. Ana Jansen estava perplexa. Resolveu se apresentar:
“Sou Ana Jansen, a Rainha do Maranhão!!!”
“Clementino, a seu dispor, Vossa Majestade!!”
Incrédula perguntou:
“Você nunca ouviu falar de mim???”
“Sua alteza me desculpe, sou gente simples, vim da roça, não conheço nada e ninguém da realeza... Mas, respeito!!!”
Agora essa, como assombrar um sujeito que nunca soube de sua existência, vai que a maldição não pega, vai ser um desperdício de vela desconjurada. O coche foi seguindo, pela Rua do Passeio, rumo a Praça da Saudade. Nhá Jansen resolve “dá uma real” no sujeito.
“Olha aqui meu rapaz, a coisa é séria, a tua batata está assando!!!, Eu vim do mundo dos mortos e vou levar tua alma!!!!”
O bêbado engatou um gargalhada constrangedora. Ana Jansen batia o pé com os olhos faiscando de raiva.
“Eu lá sou de acreditar em assombração, essa coisa de fantasma é história para boi dormir!!!”
Nhá Jansen mordia os lábios com ódio e desespero.
“Eu vou levar tua alma para o quinto dos infernos!!!”
“Minha alma quem leva sou eu!!!”- desafia o bêbado.
Vendo que o coche parava em frente ao “Cemitério do Gavião”, Clementino desceu, mandou uma “banana” para Nhá Jansen, atravessou os portões que estavam fechados, como em um passe de mágica, e sumiu transformando-se em fogo fátuo sobre uma sepultura.
A Rainha do Maranhão esbraveja:

“Que coisa, quanto mais eu rezo mais assombração me aparece!!!!”