A vida lhe tem sido ingrata, ou senão, tem escarnecido do
pobre coitado. A sucessão de fatos adversos, o tem condenado a uma espécie de
morte moral e social, lenta e fragmentada em outras mortes.
O casamento despencou na rotina e no excesso de falta
financeira. Um ódio velado, nascido do fato de que um dia um foi apaixonado
pelo outro, foi o fungo que durante os longos vinte anos se nutriu da
incompatibilidade do casal, corroendo cada momento da vida em comum, vomitando
sobre cada fagulha do amor que um dia os uniu. O matrimonio enfadonho foi sua
primeira morte.
A segunda morte foi o divórcio, que ninguém se engane,
ainda é pior que o casamento infeliz. A falsa sensação de liberdade se dissolve
quando se percebe que o vinculo do matrimônio de fato é eterno, permanece o
mesmo desrespeito, as mesmas aporrinhações, os mesmos problemas, a mesma falta
de compreensão, de dialogo e companheirismo, só que tudo a distancia. O fato é
que a distancia não é só do ex-cônjuge, é de tudo, da vida construída, dos
filhos, de si mesmo.
A terceira morte foi o alcoolismo, que já existia em
pequenas doses, e agravou em litros, depois do divorcio.
O fumo, foi a sua quarta morte. Não tão lenta como muitos
imaginam, nem tão pouco menos dolorosa. Os pulmões, lesos e esfolados pelas
dezenas de substancias tóxicas que neles se acumulavam, abriam-se em chagas
pútridas. O fôlego se perdia e os degraus que surgiam em seu caminho se multiplicavam,
um simples passeio se convertia em penosa jornada.
A quinta morte foi o desemprego que se deu em virtude da
terceira e da quarta morte. A perda do ofício resulta no final em perda total
da dignidade, do respeito e da condição humana. Se traduz em um olhar perdido
nos dias de fome. No âmago da desesperança mora a escassez do mínimo necessário
para sobrevivência.
A sexta morte foi ter sido surpreendido, em meio a quinta
morte, pela notícia da doença da filha. Sofreu angustiado a impotência perante
o inevitável. A sétima morte foi a certeza iminente de que sua meninhinha
iria morrer.
A oitava morte foram todos os outros vícios que se
acumularam. A dependência incontrolável a incontáveis substancias nocivas e
proibidas por lei. O demônio entrava por suas veias, controlava sua mente,
devorava seus neurônios sobreviventes e consumia seu corpo. Os anos encurtaram
e a velhice precoce foi sua nona morte.
Naquela noite, chegou chapado. Era impossível dizer se só
cheirou, se foi só pico, ou se apenas, como um lorde acendeu um cachimbo de
latão, com pedras brancas, e fumou ao lado de uma família de sem-tetos embaixo
de algum viaduto.
O barracão, improvisado com placas de zinco e madeira,
sobras roubadas de outdoors, estas ainda guardavam os restos dos anúncios
que antes emolduravam (anúncios que vendiam carros, apartamentos caros e a
juventude estampada das vitrines.), era quente, e no verão, depois de ter sido
sido submetido a um sol escaldante, era acometido por um mormaço insuportável
que tomava conta de todo o ambiente durante a noite. Acostumado ao calor, seu
único morador, já quase o não sentia.
Ligou o rádio e foi saudado pela voz de Nelson Gonçalves.
Inspirado abriu a garrafa de vodga (que nunca lhe faltou, mesmo depois de ter
perdido o emprego e nem nos momentos financeiramente mais conturbados), acendeu
um cigarro e sentou-se na beira do colchão, que também era uma cama improvisada
no chão batido, fechou os olhos, embriagado e entorpecido pelo sono.
Pouco depois desperta atordoado, para sua surpresa ouvia a
voz da filha lhe chamando lá fora. Era uma noite bem mais quente que todas as
outras, ainda assim sentiu uma brisa suave entrar quando abriu a porta.
Ela estava linda, bem vestida e cheia de vida, nem parecia
que tinha sofrido tanto naquele leito de hospital. Envolveu o pai com o um
abraço e, em meio a um beijo suave disse: “vim te buscar”.
Vestiu o terno de linho branco, a muito esquecido, e, de
mãos dadas partiu com a filha.
Do lado de fora um alvoroço: polícia, bombeiros, muita
correria e gente desesperada. Não se sabe como, a favela, a começar pelo seu
barraco, havia incendiado e já se contavam dezenas de mortos.
Ele nem ligava. Já se passavam das dez... Estava no
paraíso!