Viajando sozinho a noite na BR 135, minha missão, entre
outras coisas, era levar um carro adquirido por amigo, de São Luis para
Teresina. O carro era um PASSAT 72, totalmente reformado e modificado, o chassi
original foi comprado em um ferro velho, ainda estava intacto, apesar de ter
sido vendido após um grave acidente.
Já havia passado de Peritoró quando o rádio ligou sozinho
em alguma estação local que só tocava aquelas canções melosas dos anos setenta,
procurei outra estação e esta só tocava disco’70. O rádio voltou sozinho para a
primeira estação.
Achei estranho, todavia não quis pensar no assunto. A
estrada estava escura e chovia muito. Tinha que me concentrar na direção. Os
caminhões passavam em alta velocidade jogando luz alta. Outro veículo se
posicionou atrás de mim e pediu ultrapassagem, foi quando reparei no retrovisor
alguma coisa diferente no meu semblante. Talvez por causa da escuridão meus
olhos, que são verdes, pareciam castanhos e, tive a impressão de que minhas
sobrancelhas estavam mais grossas e meu rosto mais corado...
Em um instante me vi sozinho na estrada, nenhum carro vindo
em nenhum sentido da rodovia, apenas os meus faróis amenizavam a escuridão da
estrada. Foi quando ouvi pela primeira vez... Parecia, no início, com um miado
de gato. Não me incomodou.
Já na terceira vez eu tinha certeza, era um choro de bebê e
vinha do banco traseiro. Já assustado espiava pelo retrovisor, não via nada
além daqueles olhos que não eram os meus.
Com os nervos a flor da pele, desliguei o rádio e ele ligou
de novo e, para minha surpresa vozes femininas, de dentro do carro acompanhavam
as canções. Eu já estava para lá de assustado, contudo as coisas só iriam
piorar. Atrás de mim, ouvi duas crianças disputando um brinquedo. Foi quando olhei
diretamente para trás pela primeira vez...
Por trás do banco do carona vinham uma adolescente de uns
quinze anos, longos cabelos negros e trajando uma blusa rendada a moda dos
hippies, segurava um bebê no colo, enquanto olhava para a vidraça e continuava
cantando, atrás de mim dois meninos entre quatro e sete anos brigavam por um
“Falcon”, um daqueles bonecos de ação da “Estrela”.
“Querido, preste atenção na estrada”- disse a voz feminina
ao meu lado.
“Não se preocupe, meu amor!!!- respondi instantaneamente,
sem pensar. E foi sem pensar mesmo, pois estas palavras se quer se passaram em
minha mente.
A mulher, ao meu lado, no banco do carona, aparentava ter
mais de trinta anos, era bonita e me olhava com ternura e familiaridade. De uma
forma estranha, também a vi com uma velha conhecida. Mais estranho ainda, é que
eu deveria está apavorado, afinal de contas, aquelas pessoas não eram deste
mundo. Porém, sentia uma espécie de alívio por estarem ali.
“Quem são vocês???” pensei em perguntar. A mulher apenas percebeu
minha inquietação e perguntou: “O que houve querido?”. “Nada.” Respondi outra
vez involuntariamente.
Percebi que ela me olhava, mas não via a mim. É como se
houvesse outra pessoa no meu lugar, dirigindo o automóvel. Me dei conta,
de repente, que não era eu que devia está ali, que eu era o intruso.
Olhei para o retrovisor, e aqueles olhos estranhos estavam lá, no lugar dos
meus.
Foi quando aconteceu. Logo depois da curva um caminhão
ultrapassando um carro de passeio, invadiu a minha pista e veio em alta
velocidade em nossa direção. Os faróis do caminhão iluminaram todo o interior
do carro e gritos pavorosos entoaram em minha cabeça.
Atravessei o caminhão como se fosse feito de fumaça, o
carro derrapou e fui parar no acostamento. Olhei para trás e vi que os meus
passageiros, estavam de pé na beira da estrada. A adolescente com o bebê no
colo e a mulher segurando a mão das duas crianças. Sai do carro, não me
importando nem com o medo nem com a chuva e fui de encontro a eles.
“Perdão!!!”, a palavra me veio involuntariamente a boca.
Olhei para o chão, e vi sob os pés daquela família, cinco cruzes, daquelas que
a gente vê o tempo todo na beira das estradas. Senti os olhos marejados, apesar
da chuva.
Soube mais tarde, pelo meu amigo que adquiriu o veículo, que
quase uma família inteira havia perdido a vida naquele carro, num grave
acidente naquele mesmo ponto da estrada. Apenas o pai sobrevivera, vindo a
falecer anos depois.
Retornei para o carro para continuar a viagem. Liguei
o motor e acendi os faróis. Um senhor de aparentemente uns sessenta anos
apareceu na minha frente. Este se aproximou da janela do carro e com um sinal
me pediu para baixar o vidro.
Tinha os mesmos olhos que eu via no retrovisor, apenas com
o semblante um pouco mais envelhecido. Sorriu para mim e me disse em um
tom sincero.
“Daqui para frente, que só Deus lhe acompanhe...”