Madrugada
de quinta para sexta, noite de lua cheia, Nhá Jansen, toda espevitada, sai em
seu pavoroso coche fantástico em busca de almas desavisadas para amaldiçoar.
Fez o seu itinerário de sempre pelas principais ruas do centro histórico de São
Luis, passou na Fonte do Ribeirão para dá um olá e jogar uns camundongos para
amiga Serpente Encantada das galerias subterrâneas, ao encontrar a colega de
assombração, reclama da vida, ou da morte, sei lá...
“O
negócio está ficando difícil nem uma viva alma, isso é que é uma maldição...”
A
serpente consola:
“Que
isso pequena, hum, deixa de besteira. O povo mudou paras as bandas do São
Francisco, mas tem sempre um esquecido das festanças zanzando por aí.
“Só
vendo colega, só vendo...”
E
não é que do nada, como se alguém tivesse falado o nome do diabo, que ele
apareceu... Lá vinha a “vítima” cambaleando e tropeçando na calçada, descendo a
Rua dos Afogados. Com um sorriso largo, de orelha a orelha mesmo, a maldita
partiu no encalço do infeliz.
Vamos
por partes: para quem ainda não sabe da missa o terço, Nhá Jansen, é Ana Jansen
ou Donana, que em vida era Ana Joaquina Jansen Pereira, famosa
matriarca do tempo do Ronca, que ficou conhecida como a “Rainha do Maranhão”,
famosa pelo poder político que conquistou, por histórias envolvendo retratos,
pinicos e fezes, e por ser perversa e exageradamente cruel no trato com os
escravos. Há que diga que isso foi só intriga da oposição.
O
fato, que nos interessa no causo em questão, é que por conta de suas maldades
com os cativos, a mesma foi alvo de uma terrível maldição: depois de tanto usar
os negros como tapete para não sujar seus sapatos de linho europeu na lama
maranhense; de jogar os condenados num poço cheio de lanças afiadas, e; de
arrancar com alicate os dentes de uma negra formosa, que por azar atraiu com
seu sorriso a atenção de um fidalgo preferido da madame (que de modo singelo
elogiou a arcada dentária da negra despertando o ódio e inveja da
broaca), bateram um tambor para ela lá para as bandas da Praia Grande...
A
maldição consistiu numa condenação eterna: sua alma penada pela eternidade
vagaria pelas ruas de São Luis em uma carruagem encantada, o coche sinistro
seria puxado por uma pareia de cavalos que ao invés de cabeças teriam fogo nas
fuças e conduzida por um escravo decapitado. Ao se deparar com algum incauto,
oferece ao coitado uma vela acesa, na manhã seguinte a mesma se transforma em
osso de defunto e a vítima, com dores, alucinações e febres, definha enfurnada em
uma cama até a morte.
Mas,
com o passar dos anos o ofício de assombrar ficou penoso para as criaturas das
trevas do Maranhão: o povo se mudou do centro histórico, as histórias foram
esquecidas, as crianças só querem saber de vampiro, lobisomem e zumbi, essas
assombrações do cinema. Dizem até que tem outra aí querendo ser “Rainha do
Maranhão”, desse jeito ninguém pode ser amaldiçoada, já deu o que tinha que
dá...
O
homem subia a Rua dos afogados, canbaleando, em direção a Praça Deodoro. Pronta
para o bote, Donana pensava: “É hoje que eu cumpro minha sina!!!”. Aproximou-se
e, pela janela da carruagem ofereceu a vela maldita. O homem de supetão, puxou
um charuto do bolso do paletó e acendeu na vela. “Brigado, pela delicadeza”
agradeceu. Nhá Jansen, atônita, murmurou: “Era só o que me faltava...”
Tinha
lá os seus sessenta anos, bêbado de dá dó, o paletó encardido e amassado, não
via sabão e ferro de engomar a anos. Os cabelos grisalhos pareciam um ninho de
japim escorrendo de sua cabeça, orelhas e nariz agigantados, assim como os
dedos das mãos, tinha a pele escura, mais de fato não era negro, “um mestiço”
(desdenhou a amaldiçoada). Larga, em um sorriso de lábios anêmicos, a boca
quase desprovida de dentes exalava mais álcool que um alambique, fétida como
carniça, enojou até a mais ilustre das defuntas.
Uma
idéia diabólica se apossou de Donana, iria se divertir com aquele mentecapto e
depois amaldiçoá-lo. Toda assombração tem direito a um “relax”, um
divertimento, pensou. Então ofereceu ao Pé de Cana uma carona em seu coche
infernal.
Os
cavalos com fogaréu nas ventas, o cocheiro decapitado, o estranho aspecto da
carruagem e o voz tenebrosa da Sinhá, nada, nem de longe intimidou ou chamou a
atenção da vítima. Ana Jansen estava perplexa. Resolveu se apresentar:
“Sou
Ana Jansen, a Rainha do Maranhão!!!”
“Clementino,
a seu dispor, Vossa Majestade!!”
Incrédula
perguntou:
“Você
nunca ouviu falar de mim???”
“Sua
alteza me desculpe, sou gente simples, vim da roça, não conheço nada e ninguém
da realeza... Mas, respeito!!!”
Agora
essa, como assombrar um sujeito que nunca soube de sua existência, vai que a
maldição não pega, vai ser um desperdício de vela desconjurada. O coche foi
seguindo, pela Rua do Passeio, rumo a Praça da Saudade. Nhá Jansen resolve “dá
uma real” no sujeito.
“Olha
aqui meu rapaz, a coisa é séria, a tua batata está assando!!!, Eu vim do mundo
dos mortos e vou levar tua alma!!!!”
O
bêbado engatou um gargalhada constrangedora. Ana Jansen batia o pé com os olhos
faiscando de raiva.
“Eu
lá sou de acreditar em assombração, essa coisa de fantasma é história para boi
dormir!!!”
Nhá
Jansen mordia os lábios com ódio e desespero.
“Eu
vou levar tua alma para o quinto dos infernos!!!”
“Minha
alma quem leva sou eu!!!”- desafia o bêbado.
Vendo
que o coche parava em frente ao “Cemitério do Gavião”, Clementino desceu,
mandou uma “banana” para Nhá Jansen, atravessou os portões que estavam
fechados, como em um passe de mágica, e sumiu transformando-se em fogo fátuo
sobre uma sepultura.
A
Rainha do Maranhão esbraveja:
“Que
coisa, quanto mais eu rezo mais assombração me aparece!!!!”